Jussara Lucena, escritora

Textos

Abandono

Indiferente ao movimento a sua volta, ela circula pelas ruas do bairro. A mente fervilha com o vazio que o tempo lhe trouxe. Chamam-lhe Maria, talvez pela doçura com que embala o filho imaginário ou quem sabe pelos lábios que parecem expressar o doce carinho de mãe. Para outros, apenas uma louca de olhos sem vida e de gestos incertos.

Seu abrigo é uma marquise da velha estação, próximo do ponto de táxi. Touca e blusa de lã, uma velha calça de elanca marrom e um chinelo de couro são suas vestes para qualquer estação do ano. Agarra-se também a uma manta e guarda alguns cacarecos que recolhe do lixo numa bolsa a tiracolo. Presa à cintura balança uma caneca, já quase sem esmalte.

O cérebro atrofiado já não sente o mau cheiro de suas roupas, do seu corpo ou da comida podre que digere. Em seu mundo não há flores, sons ou estrelas, qualquer coisa que ela possa perceber como belo. As palavras também não fazem mais sentido. Ignora a zombaria dos meninos na rua ou o carinho dos mais complacentes. Simplesmente vaga em meio ao vazio que lhe restou, mergulha em sua solidão.

Os raros momentos de lucidez não são capazes de lembra-la o passado, trazer de volta a imagem da moça que enchia de graça e sensualidade seus belos vestidos, de trazer de volta a jovem que adorava dançar e gargalhar. Ela teve grandes paixões, deitou-se em muitas camas, porém houve um único amor, hoje sem rosto, sem nome. A barriga abandonada, o desprezo da família, o filho com poucas horas de vida. Arrancaram-lhe os sonhos, a vontade de viver. Não teve forças para tirar a própria vida.

Como é impossível aprisionar o tempo, a noite indesejada chegou. Ela sentou-se sob a marquise, devorou um pedaço de pão murcho e bebeu da água de uma garrafa plástica. Recostou-se na parede, resmungou uma canção que lhe veio á mente, amaldiçoou um grupo de jovens que a provocaram e vencida pelo cansaço dormiu.

Em sonho, toma o filho nos braços, beija-o, amamenta-o. Os olhos da pequena criança brilham e saciada, sorri. A mãe recompensada retribuiu o sorriso. Alguém lhe toca o ombro, lhe beija a fronte, acaricia seus cabelos. Ele sussurra uma canção em seu ouvido e a tira para dançar. A criança no berço observa tudo tranquila. Ela valsa, rodopia, se sente amada. O som da orquestra imaginária toma conta do ambiente. Ela mal percebe seus pés que parecem flutuar sobre o piso liso do salão, apenas fita os olhos de seu par. De repente a música cessa e ela se vê só no vazio, úmido, escuro e silencioso. Mil vozes tomam conta de sua cabeça. Atordoada ela cai num abismo sem fim.

Acordada, percebeu a realidade. Espremeu-se na parede. As lágrimas reaprenderam o caminho, molhando o rosto de pele ressecada e trazendo outra vez o gosto de sal. No frio da madrugada gritou em silêncio, gemeu profundamente e partiu.

Pela manhã um taxista estranhou a presença da mulher, ainda deitada na calçada. Aproximou-se. O gélido corpo aparentava uma suave expressão de felicidade, um sorriso. A cena chamou a atenção dos transeuntes por alguns instantes e logo depois já não era mais percebida. Passadas algumas horas o corpo ainda estava lá. A manta agora escondia sua face. Ao seu lado uma única vela.

Um sedan preto estacionou e atrás dele um carro da agência funerária. Um senhor grisalho e apoiado sobre uma bengala se aproximou. Com esforço curvou-se removeu a manta do rosto dela. Acariciou seus cabelos. Fez uma prece enquanto lágrimas corriam pela sua face. Apanhou uma fotografia no bolso do paletó e colocou-a nas mãos dela, agora cruzadas sobre o peito. Ela fora realmente bela - pensou. O motorista o apoiou para que não caísse. Já era tarde para arrependimentos.

Começou a chover. A água escorria sobre o luxuoso caixão, enquanto o corpo mal cheiroso e esfarrapado foi nele depositado.

Texto selecionado para compor a Antologia Perdoe-me - Contos Dramáticos, organizado pela Editora Illuminare.

Adnelson Campos
13/10/2016

 

 

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