Jussara Lucena, escritora

Textos

Recados

Eu não tinha certeza do motivo que me levara até lá. No palco do auditório lotado, o médium realizou uma palestra falando da missão lhe fora confiada. Falou da sua visão do espiritismo e depois começou uma sessão onde prometeu receber mensagens endereçadas para algumas das pessoas presentes. Sob a luz baixa, concentrou-se, colocou uma das mãos na fronte e fechou os olhos. Sob o alcance de suas mãos apenas a lista de presença, papel, alguns livros e uma caixa com lápis, caneta e giz de cera. Com agilidade incrível movimentava os objetos, transformava-os rapidamente em belas e intrigantes mensagens ou desenhos diferenciados, nos mais diversos estilos.

Em transe, antes de executá-los, anunciava o autor que o usaria como meio. Depois, apenas tocando a lista de presença, anunciava o nome do escolhido para recebê-lo.

Eu assistia a tudo num um misto de curiosidade e descrença. Pensei que nosso palestrante fosse apenas uma pessoa bem treinada. Comecei a mudar minha opinião quando percebi a reação de cada uma das pessoas que recebia o seu pedaço de papel ou objeto. Concentrei-me um pouco mais no trabalho dele.

O homem anunciou o novo visitante: Pablo Picasso. Inexplicavelmente, eu disse ao meu amigo, que estava sentado ao meu lado: “É para mim! ”. O médium pegou um punhado de giz de cera, um amontado em sua mão, esfregando-os sobre a contracapa do livro. Acompanhei a execução e antes que ele terminasse, num ato reflexo, fiquei em pé. Em poucos segundos ele concluiu o desenho e ainda em transe, chamou o meu nome. A esta altura eu já estava no meio do corredor principal do auditório para buscar a minha mensagem. Meu amigo assistia a tudo sem acreditar no que acontecia. Ao final fui cumprimentar o médium. Ele permaneceu indiferente a minha presença e a dos demais também.

Sai dali e fui até a minha sala. No caminho não consegui tirar os olhos do papel. Eu havia visto algumas imagens de obras de Picasso, e o desenho guardava alguma semelhança. Conectei-me na Internet e busquei imagens das obras do pintor e comparei as assinaturas. Mesmo não sendo um especialista eu podia perceber as coincidências. Mas como alguém com um punhado de giz de cera na mão, sem o menor cuidado com a inclinação do material ou com a intensidade com que comprimia a folha poderia fazer algo com riquezas de detalhes, combinar cores, diferenciar o traço? A assinatura era muito parecida, a não ser pela letra final que parecia um pouco mais estendida.

Passei um bom tempo me questionando se havia algum motivo para que eu recebesse aquela mensagem. Qual seria o recado? Teria eu uma missão?

Envolvido com o dia-a-dia, deixei o desenho de lado. O livro permaneceu por alguns anos guardados num armário. Até que um dia, procurando por um documento encontrei, numa revista, uma frase de Picasso. Nela o artista dizia: “se sabemos exatamente o que vamos fazer, para quê fazê-lo?”. Lembrei do livro e, revirando o armário, me reencontrei com a figura desenhada através das mãos do médium.

Dez anos haviam se passado e eu me perguntava se o que eu estava fazendo da minha vida era o suficiente. O que eu deixaria, qual o legado de minha existência. Eu sempre quis fazer tudo de forma planejada, da melhor maneira possível. Talvez o que me faltasse, fosse experimentar mais. Eu olhava a minha volta. Quase todos tinham um hobby, muitos possuíam dons artísticos. E eu, o que sabia fazer além de gerenciar a empresa e preparar relatórios técnicos. Meus desenhos eram verdadeiros garranchos. Pintar, só paredes. Tentei por várias vezes aprender a tocar algum instrumento musical, me faltava ritmo e coordenação motora.

Eu olhava para a figura desenhada no livro e pensava no homem revolucionário e que talvez tenha me mandado um recado, mesmo após trinta anos de sua morte. Éramos muito diferentes, conformei-me com o conservadorismo. São raras as pessoas que alcançam a projeção que ele conquistou. Eu não tinha tal pretensão. Mas eu queria muito fazer algo diferente, deixar uma marca.

Picasso também foi poeta, algo pouco divulgado. Para mim, faltava mais uma vez o ritmo para os versos. “Mas espere lá! ” - pensei. Eu não tenho que ser como ele, nem fazer algo que ele fazia. Se quero deixar uma marca, tem que ser a minha. Me ocorreu que eu sabia escrever bons relatórios, conseguia convencer pessoas, vender ideias. Faltavam os sentimentos. Lembrei de um trecho de um poema do mestre Picasso:

“A vida não é medida pelo número de vezes que respiraste, mas pelos momentos em que perdeste o fôlego:
De tanto rir...
De surpresa...
De êxtase...
De felicidade...”.

Eu, a exemplo de qualquer ser humano, havia experimentado alguns desses momentos, quer na vida real, lendo um livro, assistindo a um filme ou ouvindo uma música. Assim, eu também tinha histórias para contar, não só as minhas, mas a de outros também. Comecei a escrever.

Eu lia meus textos e gostaria que eles tivessem sons, cores, formas. Quando encontrei alguns leitores, descobri que os textos tinham muito mais do que eu podia perceber. Aprendi que cada via as histórias sob diversas óticas. Assim, cada obra não era única e sim múltipla. Eles identificavam em meus textos coisas que nem mesmo eu percebia, informações ocultas em minha mente levadas ao público através das personagens e suas falas ou descrições.

Certo dia, tive a certeza disso. No lançamento de um de meus livros, entre tantos presentes, percebi uma mulher que se aproximava. Um jovem a acompanhava, segurando um cavalete em suas mãos. Posicionou-o ao lado da mesa onde eu autografava os livros. A senhora esperou pacientemente na fila com um embrulho na mão. Entregou-me e pediu que eu o abrisse. Era uma bela tela. Deposite-a no cavalete. Lembrava em muito obras do cubismo analítico e apesar da abstração enxerguei nela uma de minhas obras.

- É lindo! Me vejo nele!

- Sim, é dessa forma que vemos o seu texto “Espelho”.

- A senhora pinta muito bem!

- Pintei-o com a ajuda de um amigo.- disse-me ela.

Sem saber o que dizer, perguntei:

- Gostaria de um livro autografado? – Ofereci.

- Sim, gostaria muito.

- Para quem dedico?

- Para Pablo, por favor.


Texto classificado em 6.º lugar no Concurso de Contos Cidade do Penedo 2017.

Adnelson Campos
29/10/2017

 

 

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